Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje, retrato
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?

Cecília Meireles

Um poema, um verso

Não digas onde acaba o dia.
Onde começa a noite.
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra,
Onde termina o céu
Não digas até onde és tu.
Não digas desde onde és Deus.
Não fales palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa,completamente silencioso,
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.

Cecília Meireles

Quando Vier a Primavera

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Quando vier a Primavera, 
Se eu já estiver morto, 
As flores florirão da mesma maneira 
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada. 
A realidade não precisa de mim. 

Sinto uma alegria enorme 
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma 

Se soubesse que amanhã morria 
E a Primavera era depois de amanhã, 
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã. 
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo? 
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo; 
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse. 
Por isso, se morrer agora, morro contente, 
Porque tudo é real e tudo está certo. 

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem. 
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele. 
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências. 
O que for, quando for, é que será o que é. 

(Poemas Inconjuntos, heterónimo de Fernando Pessoa)

Alberto Caeiro

QUE ATENTE OUTRO

É estranho quando os sentimentos vem e vão,
Mas estranho quando eles voltam sem avisar.
Quem é este desejo, que instalou novamente?
Que incomodo é este com aparência de ciúmes.
Que coração torto este que me causa desgosto,
O sentimento deveria ter sido com um aborto;
Proibido ou não, já não se discute mais a questão,
Mas uma vez abortado não pode cometer o erro,
O erro deste regresso indigesto tão indesejado.
Foi duramente tirado depois de tantas ataduras
Na tentativa de salvar o que já havia se perdido
Depois de tanto sacrifício, como ousa regressar?
Que liberdade foi esta que te deixou adentrar,
Pois pode dar a meia volta, aqui não vai ficar.
Ele não tem dona e sem dona permanecerá.
Pegue todas suas recordações e as leve consigo,
As que deixarem vou todas incinerar até pó virar.
E antes que tentar novamente sua volta forçar,
Com cadeados e fechaduras vou tentar neutralizar
A volta de qualquer sentimento que venha atentar.

Por Davi Matos 

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